A CLASSE MÉDIA SEM
PROZAC
No
último mês as manifestações pelo país afora têm desafiado os entendimentos.
Desde bobagens sem nenhum conteúdo como
“movimentos pós-modernos” (prefixozinho cada vez mais fútil), até subestimações
igualmente sem utilidade do tipo “movimento de boyzinhos e patricinhas de
direita”, o fato é que estes acontecimentos alteraram, ainda não é possível
prever quanto, o cenário da disputa política no país , pelo menos até a próxima
eleição.
Considero que estamos diante de um
movimento que se caracteriza principalmente por um sujeito notoriamente difuso : a classe média tradicional. Segundo
pesquisa feita pelo Datafolha a composição de quase 80% das manifestações em
São Paulo era de jovens, universitários e assalariados, precisa dizer mais ?
Ë de
Jessé Souza, professor da Universidade
Federal de Juiz de Fora que vem uma boa
definição sobre essa classe média[1] :
“Essa
classe social , ao contrário da classe alta, se reproduz pela transmissão
afetiva, invisível, imperceptível porque cotidiana e dentro do universo privado
da casa, das precondições que irão permitir aos filhos desta classe competir,
com chances de sucesso, na aquisição e reprodução de capital cultural.”
(...)
“ Ainda
que classe média seja um conceito vago ( e , exatamente por conta disso,
excelente para todo tipo de ilusão e de violência simbólica que passa por “ciência”)
ela implica em todos os casos um componente expressivo importante, e,
consequentemente, uma preocupação com a “distinção social”, ou seja com um estilo
de vida em todas as dimensões que permita afastá-la dos setores populares e
aproximá-la das classes dominantes.”
A
questão é : por que a classe média vai para a rua e por que agora ? Creio que
uma explicação possível é que ela tem a sensação de que vem perdendo seu lugar
no mundo e não há perspectiva de recuperá-lo.
É
sobre os extratos médios tradicionais que mais se abate o crescimento da
inflação neste momento. Ainda que não a picaretagem da “inflação do tomate”,
ela existe nos serviços, nos bens importados, em eletrodomésticos sofisticados,
etc. É o dólar flutuando para cima,
fazendo as viagens de férias mais caras, ou mesmo inviáveis.
São os novos direitos das empregadas
domésticas, apertando o orçamento mensal e criando uma nova forma de relacionamento
ali, na intimidade, dentro de casa, onde o velho poder dos tataranetos de donos
de escravos ainda guardava um pouco de sua força. Os planos de saúde viraram autêntico SUS ( no pior sentido) pago,
obrigando não raro o recurso ao Judiciário e surgindo agora as versões
“Golden”, “vip”, bem mais caras obviamente.
São as cotas para alunos da escola pública nas
universidades públicas, acirrando a concorrência na clássica forma de
reprodução desta classe média, o acesso ao ensino superior. Até no serviço
público, sua ocupação até hoje quase
cativa , começa a se desmontar o
privilégio da aposentadoria integral e surge a necessidade de se conviver com a
administração de fundos de pensão. O trânsito impraticável tornou uso do potente automóvel uma tortura diária.
Os
jovens e seus pais vivem a insegurança da morte, em um incêndio de boite ou pelas balas de assaltantes que
invadem restaurantes, atacam na saída de escolas atrás de celulares e tênis,
abordam motoristas em sinais. Boa parte das famílias convive com a dependência
química.
Até seu
herói do noticiário estava sob ameaça : a PEC 37, prestes a ser votada por um Congresso
em franco descrédito, acabaria com o poder de investigação do Ministério
Público e lançaria o país no abismo da corrupção e da impunidade ( pelo menos
era isso que dizia o próprio ministério público, sem explicar bem como até hoje
todas as investigações foram feitas sem que o MP tenha operado um único grampo
telefônico).
Denúncias
contra corrupção, especialmente mas não só, em relação as obras da copa do
mundo, não à toa capitaneadas pelo canal de TV a cabo ESPN, produto de consumo
típico desta classe média.
A
ascensão dos novos “batalhadores”, na feliz expressão do professor
mineiro Jessé Souza, que não sendo esta classe média tradicional, mas uma nova
“classe trabalhadora”, começaram a fazer coisas como lotar aviões e aeroportos,
criando um convívio muitas vezes considerado “inconveniente” e pior,
pressionando a capacidade de atendimento dos serviços públicos.
Combustível
existe, o fósforo foi riscado pelo governo do PSDB do estado de São Paulo
quando tomou uma decisão no mínimo estranha : proibir, manu militari, manifestações contra aumento de ônibus na av.
Paulista, muito embora manifestações de rua aí sejam parte cotidiana da
paisagem, já vi até uma falada em árabe! E aí de fato uma coisa nova surgiu : o
uso maciço das redes sociais como instrumento de mobilização de rua. Celulares
e internet foram os megafones que mobilizaram a insatisfação acumulada em todo
o país.
Para
que isso ocorresse há uma trajetória de longa preparação. Desde a popularização
dos meios de comunicação como celular e
internet, ao exercício cotidiano
da liberdade de expressão por meio de blogs, facebook, petições
eletrônicas, etc. No caso jogou também papel decisivo para fortalecimento do
movimento a ampla simpatia dos canais de TV aberta, que viram neles a chance de
emparedar o governo federal e aí, obviamente, melhor seu posicionarem na
sucessão que se avizinha.
O
movimento é horizontal, não há um comando unificado, há vários líderes que falam
nas redes sociais e atraem adeptos. Não há pauta definida, mas diversas pautas,
todas unificadas pelo mesmo “sujeito” : uma classe média angustiada, agoniada,
revoltada contra o que considera aquilo
que usurpa seu lugar ao sol : serviço público
deficiente, com ênfase no trânsito e no transporte urbano mas não só, falta de
políticas para educação e saúde, segurança, a PEC 37, corrupção na
administração pública com acento nos gastos pouco transparentes da copa do
mundo de futebol. Muito do que aparece
serve mais para esconder a raiz da angústia : a insegurança que este segmento
tem hoje sobre sua sobrevivência e reprodução. A violência é a face patológica
desta tensão.
Um
aspecto, ou melhor, um espectro surgiu com relevância : a repulsa aos partidos
políticos existentes. Em diversos graus, vai daqueles que respeitam as opções
partidárias criticando somente tentativas de aparelhar o movimento, até
atitudes notoriamente fascistas de agressão física à militantes identificados.
De todo
modo o ovo da serpente da busca de uma liderança carismática, forte,
autoritária, acima dos partidos e das
instituições tidas por falidas está lançado, resta saber se haverá quem o
choque com sucesso e retome o discurso de Benito Mussoline : “ A existência dos
partidos fraciona a nação e a política é o reino da divisão do povo”.
A fragmentação
dos movimentos faz com que seja difícil a interlocução institucional sobre as
demandas, o que milita em favor do seu arrefecimento, mas não pode ser motivo
para desconhecimento daquilo que os levou á rua.
Frente
a isso as forças políticas, dado a rapidez do movimento atuaram de improviso
que, como sempre, só é feliz no jazz. A oposição de Marina a Aécio Neves ficou
muda. Como à muito não possui um programa claro para o Brasil a não ser o de
voltar ao governo custe o que custar, também não tem o que oferecer às ruas.
Do lado
do governo o improviso gerou coisas desnecessárias como, por exemplo, conceber
crime de corrupção como “crime hediondo”, mera concessão ao conservadorismo
demagógico. A proposta feita de
improviso da “constituinte” para reforma política e plebiscito, apesar de ser
uma ideia a ser discutida foi feita de forma confusa, cheia de idas e vindas,
não mexe na raiz do problema.
Apesar
disso é ainda no governo que algo de bom pode surgir. Há uma obra a ser
defendida. Uma obra de inclusão social de milhões de brasileiros, de geração de
milhões de empregos, de retomada de uma política industrial e agrícola, de uma exitosa política externa, de
resistência à crise internacional que se arrasta desde 2008 e depois dos EUA
vitima implacavelmente a Europa.
O que
não pode acontecer agora é render-se à
banca que exige mais taxa de juros e assim parasitar o país, freando qualquer
possibilidade de crescimento; é cair no conto do vigário da austeridade burra e
diminuir investimentos públicos essenciais para manutenção das boas taxas de
emprego; é não combater a especulação do dólar inclusive com as reservas que
existem; é render-se a um pragmatismo político que agora virá com a cantinela
de um fisiologismo regional, apto a descaracterizar as forças que sustentam o
atual governo como forças de mudanças, mesmo com concessões pontuais.
É
preciso olhar para esta classe média e travar o bom combate em seu
interior. Aumento expressivo de vagas
nas universidades públicas com contratação de professores qualificados e avanço
nas condições de ensino e pesquisa ; mudança profunda nas agências reguladoras
de serviços públicos, hoje, em regra, claramente capturadas pelos interesses
privados que deveriam fiscalizar e regular, ou, mesmo quando não chega a tanto,
incapazes de impor efetividade em suas decisões.
Uma
nova política para o problema das drogas, que permita uma disputa real pelos
corações e mentes de jovens hoje em destruição. Uma política nacional de
melhoria na qualidade do ensino público de primeiro e segundo graus. Enfim, não
quero, nem posso escrever um programa, mas creio que o momento que se abre será
de profunda disputa política e ideológica, é preciso acreditar que as pessoas
estão prestando atenção e querem ouvir respostas efetivas às suas angústias que
são várias e possuem bases bem reais, da capacidade das forças políticas em
luta de formularem, difundirem e,
especialmente no caso do governo, colocarem em prática tais respostas, é que se
decidirá o futuro.
CARLOS BOTELHO
Advogado.
carlos.botelho@uol.com.br
CARLOS BOTELHO
Advogado.
carlos.botelho@uol.com.br