O Brasil é a melhor prova de que o Poder Judiciário é o resquício da monarquia no coração da República. As histórias estarrecedoras divulgadas pela imprensa a respeito de um juiz pego por dirigir o Porsche apreendido do empresário Eike Batista, outro a dar voz de prisão a uma fiscal de trânsito que o multou por dirigir sem carta, de um terceiro que fez o mesmo com funcionários da TAM em um aeroporto por ter perdido seu voo, não são apenas casos tragicamente anedóticos. Elas são o sintoma da autonomia profunda do Judiciário em relação aos mecanismos de prestação de contas e de pressão da soberania popular.
Um juiz que debocha da população ao sair com um carro apreendido e ainda declara ter feito isto porque o carro estaria mais bem protegido em suas mãos sabe que não só nada lhe ocorrerá, mas que sua posição de juiz sempre será uma intimidação contra quem ousar criticá-lo. Como a antiga nobreza monárquica, ele sabe estar longe do alcance da lei e da força da crítica, pois, no seu caso, é ele quem aplica a lei. Na zona obscura da decisão a respeito da aplicação da lei, sempre é possível operar a partir de seus próprios interesses se os mecanismos de pressão e controle são ineficazes. No caso brasileiro, não é novidade que os mecanismos de autocontrole desenvolvidos pelo Judiciário se mostraram, até o momento, fracos e incapazes de se contrapor às interferências do espírito de corporação. Juízes julgando juízes são como militares julgando militares, policiais julgando policiais. Todos sabemos qual o resultado dessas relações tautológicas.
Nada disso, no entanto, deveria nos surpreender. Contrariamente aos outros dois Poderes, eleitos a partir da decisão popular e passíveis de não serem reconduzidos, o Judiciário acredita tirar sua legitimidade de alguma espécie de “direito por saber”. No entanto, é da essência da democracia quebrar toda legitimidade por saber, nascimento ou riqueza. A democracia, ao menos em seu conceito, não é o governo do mais sábio, do mais rico ou dos “bem-nascidos”. Ela é o governo de “qualquer um”, ou seja, daquilo que define todos em relação de igualdade. Qualquer um pode (ou ao menos deveria poder) assumir a gestão do poder, daí porque, por exemplo, a profissionalização da política é uma das maiores aberrações antidemocráticas.
Ancorado na crença da existência de um “saber jurídico” que não é resultado da expressão da soberania popular, o Judiciário brasileiro foi capaz de se colocar como único imune à escolha popular em todas as suas instâncias. Conhecemos países nos quais os promotores são eleitos, outros nos quais mesmo os membros do Supremo Tribunal são igualmente eleitos, mas no Brasil não apenas isso sequer é discutido como poucas coisas são mais difíceis do que afastar um juiz corrupto ou parcial. Até mesmo o finado Demóstenes Torres continuou ligado à sua função de desembargador, isso após sua fantasia de defensor da moralidade costurada pela revista Veja cair de podre.
Nesse sentido, exemplos como o comportamento aterrador de certos juízes brasileiros deveriam nos incentivar a levar ao debate público a necessidade de democratização efetiva do Judiciário. Os sistemas de indicação e concurso não são sempre os mais adequados para um Poder que quer se colocar como o guardião do espírito das leis. Quem não é investido diretamente pelo povo não pode compreender o espírito de leis que deveriam ser a expressão da soberania popular.
Essa é mais uma expressão de como a forma de democracia parlamentar que temos e fomos capazes, até agora, de construir não nos serve mais. A necessidade de invenção institucional nunca foi tão urgente, assim como nunca foi tão urgente a capacidade de pensar estruturas institucionais que aumentem a densidade da participação popular nos processos decisórios de todos os Poderes. Enquanto isso não ocorrer, teremos de nos acostumar com esse espetáculo deprimente de juízes com comportamentos de quem mereceria estar do outro lado no tribunal.
(Via Conversa Afiada)
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