Jorge Paz Amorim

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Belém, Pará, Brazil
Sou Jorge Amorim, Combatente contra a viralatice direitista que assola o país há quinhentos anos.

domingo, 3 de maio de 2015

Pará entra no circuito das seculares festas culturais


Músico, produtor e pesquisador, Betão Aguiar cresceu entre três polos culturais distintos, São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro. Soteropolitano da Baía de Guanabara, como se define, viu nascer a Timbalada, conheceu cantos de candomblé e os blocos afro.
Em São Luiz do Paraitinga, interior paulista de onde vem o lado materno da família, presenciou fanfarras, cortejos e procissões nas festas do Divino. Filho de Paulinho Boca de Cantor, dos Novos Baianos, veio ao mundo amparado pela terna loucura do grupo de malucos que rimavam samba com guitarra. Banhado em música, mergulhado em ritmos, cedo se interessou pela pluralidade sonora. 
Na virada do milênio, o baixista de 37 anos estava em Pernambuco acompanhando o cantor Moraes Moreira no projeto Música do Brasil, do antropólogo Hermano Vianna, quando se sentiu tocado pela beleza de maracatus, cocos e afoxés. Foi uma epifania.
Começava ali a longa viagem de uma nau a singrar os mares dos mestres populares que Brasil adentro protagonizam cantos e danças sacros e profanos materializados no jongo, congada, folia de reis, calango, adoração, moçambique, brão, festa do divino, incelença, penitentes, cirandas, aboios e pastoris. Um universo rico movido a festas, religiosidade e camaradagem, cujas tradições começam a se transformar e não raro se perder. 
Ao refletir sobre a inspiradora iniciativa de Vianna de mapear as manifestações culturais populares de 82 municípios, que resultou em vídeos, livro, fotos e caixa com quatro CDs, e projetos anteriores como Música Popular do Brasil, da gravadora Marcus Pereira, nos anos 1970, e a Missão de Pesquisas Folclóricas empreendida nos anos 1930 por Mário de Andrade, Aguiar deu-se conta de que, à exceção do levantamento de Mário de Andrade, que pode ser consultado em site do Sesc, nada do material está à venda. Simplesmente não existe mais. 
Após anos de pesquisa autopatrocinada, o músico concluiu que a melhor forma de registrar as manifestações com o máximo de naturalidade e o mínimo de interferência seria aproveitar as festas locais, “para não ficar aquela coisa fria e perfeita de estúdio. Além de hoje termos mais mobilidade com os equipamentos, o diferencial é o registro digital que ficará para sempre na internet”. 
Longe do aspecto museológico e sem pretensões de levar a termo uma “pesquisa academicamente correta” ou completa sob o aspecto etnomusical, Mestres Navegantes chega à terceira edição com um alentado acervo de 400 músicas registradas, 17 discos gravados, 15 documentários, 10 programas de rádio, fotos e textos produzidos desde a primeira edição, em São Luiz do Paraitinga, em 2011. Em seguida veio o Cariri cearense, 2013, e agora é a vez do Pará, em cujo Volume 1 se navega pelas regiões do Salgado e da Ilha de Marajó.
Aguiar tem claro que o trabalho com cultura popular é movido a empenho pessoal. O caminho até a aprovação do projeto foi longo e ele chegou a perder um patrocínio de 400 mil reais por conta da burocracia governamental. Até que a Natura Musical selecionou a iniciativa por meio de edital. Na segunda edição, Mestres Navegantes ganhou do jornal The New York Times a chancela de quarto melhor projeto musical de 2013. 
Nestas muitas andanças, o pesquisador observou a inexorável transformação das tradições. Nas congadas no interior de São Paulo percebeu a influência das escolas de samba. “Antes o batuque era menor, mais compacto, com instrumentos de couro, hoje tem surdo. Acho uma influência até saudável. Há casos em que descaracteriza, em outros acaba.”
O brão encaixa-se no segundo caso. Trata-se de um canto de trabalho, em que os homens se dividem em duplas para limpar a roça. No interior de São Luiz do Paraitinga, é comum um dos participantes propor uma charada, na base do improviso, enquanto os demais repetem uma toada. “Quando você canta um verso bonito, os trabalhador (sic) se anima de trabalhá (sic) mais e prestar atenção”, conta o mestre Renô Martins, que lamenta a falta de interesse das novas gerações. 
No contato com os mestres, o pesquisador muitas vezes teve de se adaptar ao ritmo local. Com Martins foi uma lição. “Tínhamos de reconhecer firma. Ele mora na roça, longe, e o cartório fechava às 4 da tarde. Quando cheguei à casa dele, resolveu tomar banho. Arrumado, me acalmou, ‘ô meu filho, a gente já vai, você não quer uma Fanta?’ Aí pediu pra mulher trazer farofa de pinhão e queijo. É um momento em que não se tem de acelerar. Chegamos às 7 da noite ao cartório. O funcionário abriu e nos recebeu. É gente amigável.” 
Tradições associadas ao plantio e à colheita estão sujeitas a desaparecer ou perder o vigor à medida que o meio rural diminui.  É o caso do jongo no Vale do Paraíba. “Em São Luiz do Paraitinga, ele não existe mais. Os moradores deixaram as plantações para trabalhar em fábricas em São José dos Campos. Aos sábados, dia de ensaio, as crianças querem ir ao shopping. Por isso fomos gravar em Guaratinguetá, onde houve quilombo e a raiz dessa tradição é mais firme.”
Na avaliação do músico, as incelenças e os penitentes, registrados no sertão cearense do Cariri, estão entre as manifestações mais ameaçadas. Com vestido azul e lenço de renda branca na cabeça, cores de Nossa Senhora, as mulheres são chamadas para cantar em velórios de crianças. Os cânticos pungentes têm a função de ajudar as almas a chegar em paz ao seu destino. Os penitentes, sempre homens, se flagelam e cantam para redimir os pecados da humanidade. “É como se tivessem saído do século XIX e caído no XXI”, compara Aguiar. Tomados de emoção profunda, fazem da missão uma doutrina de vida e peregrinam por cemitérios e igrejas, vestes roxas e brancas, braços lacerados pela chibata.
No Pará, o carimbó, de estrutura mais rica por incorporar instrumentos de sopro e banjo, mostra força. “É um batuque incrível. Uma festa familiar que mescla o universo da agricultura e da pesca, do caboclo, do boto e da sereia. Entre os mestres, Regatão, vendedor de raspa-raspa na Praia do Pesqueiro, em Marajó, destaca-se. Ele chegou com composições incríveis, como o carimbó do vaqueiro, verdadeiro hit.” 
De Santana do Arari, lugar lindo e precário, onde crianças nuas caminham em meio ao esgoto e palafitas, Mestre Piticaia é dos últimos tocadores do boi de caixa, feito com pele de cobra. Com a proibição do uso do couro do animal pelo Ibama, o instrumento de som estalado está fadado a desaparecer. Um dos netos do mestre sabe tocar, mas não aprendeu as músicas. 
Além de perpetuar as manifestações na internet, Aguiar acha que o projeto não teria sentido se os donos das manifestações não tivessem retorno. Cada grupo recebe um kit com 200 a 300 CDs para divulgar o trabalho. Todos os arquivos de vídeo e fotos são entregues aos mestres. As músicas recolhidas são mixadas para que possam integrar um CD-solo. “Ensinamos a fazer site, a divulgar. É enriquecedor voltar a esses lugares e ouvir como esse trabalho foi útil. É uma satisfação para eles verem que estão num site ao lado de músicos como Tom Jobim e Gilberto Gil. Isso é efetivo em termos de preservação, embora o projeto não tenha esse papel. Queremos que eles se apropriem de sua arte e, estimulados, continuem a fazer, dando continuidade por mais gerações.”
Glossário
Brão
Cântico de trabalho entoado em dupla durante mutirão para limpeza da roça. No improviso, um 
dos participantes propõe uma charada, enquanto os demais repetem uma toada.
Carimbó
Dança que resulta da influência das culturas negra e indígena executada ao som de instrumentos 
artesanais. Surgiu no século XVI no Pará e acaba de receber o título de patrimônio imaterial.
Festa do Divino
Teve origem na Alemanha, durante a Idade Média. No Brasil, passou a ser realizada em Pentecostes. 
Incelença
Mulheres vestidas com as cores do manto de Nossa Senhora, azul e branco, cantam com a intenção 
de ajudar as almas das crianças mortas a chegar em paz ao destino final.
Jongo
Era dançado pelos escravos com o intuito de aliviar a revolta e o sofrimento. Sob a batida do tambor, 
as danças e os cânticos incluem pontos entoados em linguagem metafórica.
Moçambique
Dança popular de caráter religioso. Os integrantes usam bastões e guizos e se alinham conforme um batalhão, em alusão à luta entre cristãos e mouros.
Reisado
Dançado por grupos na véspera do Dia de Reis. Originário de Portugal, tem manifestações 
no Nordeste e em São Paulo, onde também é conhecido como Folia de Reis. 
(Blog do Leandro Fortes)

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