Embora o Partido dos Trabalhadores
tenha vencido em São Paulo e sido ainda o mais votado das eleições
municipais, professor da USP vê a legenda em seu purgatório, prestes a
ter a reputação queimada em praça pública
247 - O PT vive seu inferno astral e
terá que sanar seus desvios se não quiser queimar sua reputação em praça
pública. A tese é de Eugenio Bucci, ex-presidente da Radiobras e
professor de jornalismo da USP. Leia:
O inferno astral da estrela branca
Eugenio Bucci
Uma estrela branca, de cinco pontas, sobre fundo vermelho.
Vermelho bombeiro. Vermelho Coca-Cola. Vermelho do Boi Garantido.
Vermelho bolchevique. Vermelho total. Uma estrela branca emoldurada de
vermelho.
Convenhamos, não era um símbolo que primasse pela
originalidade ou pela ousadia. Não era inusitado, não era inventivo, era
apenas óbvio. Mesmo assim, foi ele que vingou. Na falta de um logotipo
mais profissional, mais publicitário (a indústria do marketing só
chegaria mais tarde àquelas plagas), foi esse o símbolo adotado pelo
Partido dos Trabalhadores, o PT, bem no seu início, no começo dos anos
80: uma estrela branca, banal, sobre fundo vermelho.
Diz a lenda que quem costurou a primeira bandeira do
partido foi dona Marisa Letícia, em pessoa, a mulher do líder
metalúrgico de cognome Lula, astro maior do partido da estrela. Desde
então, a marca do PT ficou inscrita no DNA da democracia que sobreveio à
ditadura militar no Brasil. Não dá para entender o Brasil de hoje sem
entender o PT e sua estrela. O PT é um dos construtores, se não o
principal, do Estado de Direito em que hoje vivemos por aqui. A começar
da derrubada da ditadura.
Foram as greves do Sindicato dos Metalúrgicos de São
Bernardo do Campo, lideradas por Lula, que puseram contra a parede o
aparato repressivo do regime militar, forçando o recuo definitivo. Mais
tarde, a campanha por eleições diretas, as Diretas-Já, que levou milhões
de cidadãos às ruas em 1984, tinha José Dirceu na organização logística
de todo o movimento - revelava-se ali o estrategista e empreendedor
arguto, ambicioso e brilhante, o principal articulador da máquina
partidária e do que ele gostava de chamar de "arco de alianças" que
conduziria Lula à Presidência da República em 2002. Em 1988, a nova
Constituição brasileira saiu do Congresso com a inconfundível impressão
digital da estrela branca sobre fundo vermelho.
A história é conhecida. Está aí para ser vista e
reconhecida. Gerações de excelentes quadros políticos se formaram na
militância de esquerda e, cedo ou tarde, acabaram passando por
organizações clandestinas e pelas instâncias do PT, onde aprenderam
quase tudo o que sabem. São gestores públicos, intelectuais,
parlamentares, até mesmo jornalistas, veja você, alguns já passados dos
80 anos, outros ainda na casa dos 30, que conheceram o Brasil e seus
excluídos desfraldando a bandeira vermelha com a estrela branca.
Aprenderam política no PT. Nos movimentos sociais, aprenderam a
solidariedade, a justiça, a disciplina, a ousadia. Depois, no exercício
de cargos públicos, aprenderam que a competência técnica não pode
esperar, conheceram os estilos de governança e o imperativo da
conciliação.
O PT alcançou o poder, abrandou o sectarismo e, mais
maduro, ajudou então a moldar as próprias instituições da República, com
acertos notórios. No Supremo Tribunal Federal (STF), hoje tão rigoroso e
elogiado, a maioria dos atuais ministros foi indicada por governantes
petistas. A Polícia Federal, hoje tão implacável e festejada, cresceu e
se fortaleceu sob governos petistas. O Estado brasileiro está melhor, o
que também é mérito da estrela branca sobre fundo vermelho.
A despeito de um muxoxo aqui, de um nariz torcido acolá,
todo mundo sabe disso. Os agentes políticos, os de direita e os de
esquerda, têm plena noção de que o protagonista maior da evolução
democrática pós-ditadura atende pelo nome de Partido dos Trabalhadores.
Só quem parece não estar à altura desse fato histórico é, ironicamente, o
próprio PT. Com reações destemperadas, como que regurgitadas de uma
adolescência que já passou, mostra que talvez não entenda bem o seu
próprio papel e o seu próprio lugar.
A pior dessas reações foi a conclamação de uma onda de
manifestações públicas em protesto contra decisões do Supremo Tribunal
Federal no julgamento do mensalão. É compreensível que muitos petistas
se sintam indignados ao ver uma figura pública do porte de José Genoino
condenada pelo crime de corrupção, e isso com o voto do ministro Dias
Toffoli, o mesmo que, até outro dia, trabalhava para o partido da
estrela. É compreensível, mas a indignação não autoriza ninguém a fazer
comício contra o Supremo. Há canais legais para pedidos de
reconsideração judicial. Se, em lugar de discutir o processo e seus
eventuais erros tópicos, o PT ergue palanques para contestar a
legitimidade da própria Corte, como se ela não passasse de um
instrumento de perseguição partidária, estamos diante da ameaça de
ruptura institucional.
Nesse ponto, a postura da presidente Dilma Rousseff, de
respeito declarado ao STF, contrasta com os arroubos irrefletidos - e
serve para enquadrá-los. Dilma leva em conta que a mesma Corte que
condenou uns absolveu outros, inclusive alguns militantes do PT. Logo,
se devemos aceitar com um sorriso as absolvições, temos de acatar também
as condenações e interpor os recursos que o direito processual admite.
Fora disso, resta o tumulto.
O PT parece não saber como agir. Vive um refluxo amargo,
um atordoamento, embora siga acumulando vitórias eleitorais. Esta semana
ficou ainda mais tonto. Foi apanhado no contrapé por outro cruzado de
esquerda, com novas denúncias de corrupção. Uma investigação da Polícia
Federal revelou irregularidades escabrosas comprometendo servidores
públicos de alta patente no governo federal. O que fará o PT em seu
inferno astral? Atos públicos? Vai acusar os policiais de sanha
persecutória? Ou vai exigir mais transparência? Ou vai punir, pelo seu
próprio estatuto, os filiados envolvidos?
O PT precisa arcar com a responsabilidade de fortalecer a
democracia que ajudou a conquistar. Eis o seu lugar e o seu papel. Se
não enfrentar e sanar agora, já, os seus próprios desvios, o partido da
estrela branca emoldurada de vermelho acabará por queimar sua reputação
em praça pública. Será uma pena. A pior de todas as penas.
Um comentário:
Texto perfeito. Concordo com tudo, mas também acho que há outros grandes escândalos jogados para debaixo do tapete e que não foram julgados pelo STF. Mas acredito que a esperança é a bandeira da estrela branca nas mãos do povo.
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