Jorge Paz Amorim

Minha foto
Belém, Pará, Brazil
Sou Jorge Amorim, Combatente contra a viralatice direitista que assola o país há quinhentos anos.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Hillary Clinton é mais do mesmo. Bernie Sanders é que faz a diferença

wikimedia commons

Num Estado majoritariamente branco e evangélico, não é de se estranhar que Deus participasse, ainda que de forma oficiosa e indireta, da primeira etapa da longa e complexa disputa para escolher os candidatos dos dois grandes partidos à presidência dos Estados Unidos: as primárias de Iowa.

No bando republicano, o candidato de deus se chama Ted Cruz – podemos chamá-lo de “a cruz” – e se impôs surpreendentemente sobre a prepotência populista do favorito Donald Trump, deixando outro filho de imigrantes cubanos como Marco Rubio na terceira posição.

No bando democrata, o empate técnico de Hillary Clinton e Bernie Sanders significa, na prática, um triunfo deste segundo – que será “o martelo” em nosso quadro –, já que confirma que sua candidatura se fortalece e assusta os poderes fáticos, embora sem o rastro da foice e apesar do medo que abunda nos Estados Unidos, onde muitos consideram comunistas até aqueles que encarnam os valores do que a Europa chama de social-democracia.

Embora a quantidade de delegados em jogo para as convenções finais sejam menos de 1%, a tradição diz que o efeito dos resultados em Iowa sobre a campanha é muito mais relevante do que supõe a simples aritmética. Foi lá, por exemplo, onde a estrela de Hillary Clinton começou a se apagar em 2008, e despontou a de um semi desconhecido senador negro de Ohio, Barack Obama. Parece muito menos provável, nesta ocasião, que a ex-secretária de Estado (do governo do próprio Obama) e seja novamente vítima dessa maldição, mas não impossível.

Deus não esteve ausente, mas não foi um ator principal na batalha dos democratas, que teve a virtude mais infrequente dentro da dinâmica eleitoral estadunidense, ao enfrentar duas concepções opostas de como se deve governar o país. Acontece que, independente da proposta de recuperar um certo progressismo e da defensa de alguns aspectos do legado de Obama – que parecem depender de para onde sopra o vento –, Clinton defende o sistema e protege, antes de tudo, os interesses do establishment de Washington, que representa 1% da população que concentra o poder e o dinheiro.

Seu problema é como convencer as classes médias, principais vítimas da crise e com um peso decisivo no resultado final, de que também atuará em sua ajuda. Do contrário, seu até agora principal e atípico concorrente, o senador Bernie Sanders, de Vermont, que se apresenta como social democrata e porta-voz dos 99% restantes da população, que abomina os magnatas de Wall Street, que defende uma universidade gratuita, uma saúde pública para todos, num sistema mais amplo do que o produzido pela reforma de Obama e que levanta a bandeira da luta contra a desigualdade, tão pavorosa lá como em tantas outras partes do mundo.

O crescimento da sua candidatura é em parte resultado do que foi semeado por movimentos como o Occupy Wall Street (similar ao 15M da Espanha) e se nutre da decepção desse ectoplasma chamado esquerda, tão difícil de definir nos Estados Unidos, e que se não consegue o milagre de atrair os votos de centro está condenado de antemão ao fracasso.

Clinton e Sanders terminaram empatados em Iowa, as primárias da próxima semana, em New Hampshire, apresentam uma certa vantagem a Bernie, e deverá manter a ilusão, ao menos durante algum tempo, de que os democratas podem preferir apostar no caráter mais progressista da sua alma. Mais que uma probabilidade real, parece uma utopia. Existem muitas forças – e muito poderosas – atuando contra Sanders. Já se sabe que, embora não pareça, no final são os mesmos que terminam ganhando sempre as eleições dos Estados Unidos, só mudam alguns matizes. Aqueles que, cheios de boas intenções, tentam quebrar essa dinâmica, costumam sofrer as consequências. Ainda assim, Sanders – que deve ter consciência dos riscos – talvez se dê por satisfeito com seu período de glória, com o fato de ter sacudido as consciências.

Deus sempre está em campanha nos Estados Unidos. As possibilidades de que um candidato ateu ou agnóstico – não se sabe ao certo na verdade, mas se suspeita que sim – possa se tornar presidente são tão remotas como as que existem de que se alcance algum dia uma solução justa e negociada ao conflito entre palestinos e israelenses. Entretanto, a utilização do nome de deus em vão – ou seja, para ganhar votos – é tradicionalmente um patrimônio dos republicanos.

A religião está marcada a ferro e fogo no DNA da campanha de Ted Cruz, senador texano filho de um imigrante cubano convertido em pastor, defensor de um conservadorismo da velha escola voltado a criar uma crítica ao establishment de Washington, embora essa pretensão de ser um candidato desligado do sistema seja uma contradição com o fato de ser senador. Nisso, e em algumas outras coisas, ele se assemelha ao seu principal rival, Donald Trump, que também nunca ocupou um cargo executivo – no caso de Trump, nunca disputou cargo eletivo. Exageros extremistas a parte, Cruz lembra um pouco, em sua retórica e ideologia, ao Tea Party, o que é refletido pelo apoio mais recente conquistado por sua candidatura: o de Sarah Palin.

Em Iowa, Ted Cruz apelou a deus para que o ajude a manter vivo o despertar e o renascer dos valores do cristianismo, que ele mesmo diz encarnar. Os seus gestos não são por acaso. As orações, as invocações ao “supremo criador” e o uso reiterado da palavra “amém” são manifestações que fluem em suas performances, assim como uma tentativa de reivindicar ou de encarnar a ressurreição do espírito de Ronald Reagan – é incompreensível na Europa como essa figura pode se tornar um dos grandes ícones republicanos.

Essa religião na qual Cruz acredita e que utiliza para ganhar apoio é a mesma ferramenta com a qual denuncia que o país está sendo destruído pelo aborto, pelo matrimônio homossexual, pelas técnicas de reprodução assistida e pela “perseguição aos cristãos”. Muito já se escreveu sobre o radicalismo xenófobo e a ultra-direita de Donald Trump, a mais notória anomalia da campanha republicana até agora, mas é assombroso comprovar até que extremos chega a filosofia político-religiosa que ele quer promover dentro da Casa Branca.

Trump, o magnata tão seguro de si que afirma que não perderia apoios mesmo que matasse alguém a tiros na Quinta Avenida de Nova York, e que defende a proibição de entrada de muçulmanos no país e a deportação de 11 milhões de imigrantes, também se proclamou “um grande cristão”. Chegou a se atrever a citar a bíblia, para sua desgraça: cometeu um lapso imperdoável em certo momento, o que não passou inadvertido pelos eleitores e sobretudo pelos adversários.

Num país onde a frase “em deus confiamos” está impressa no dinheiro, e num Estado como Iowa, onde a religião possui importância social e política, o terceiro na disputa das primárias republicanas, o também filho de imigrantes cubanos Marco Rubio, não podia deixar o monopólio do cristianismo militante nas mãos de Cruz. Assim, e sem chegar aos extremos de seu oponente, o candidato conservador mais ligado ao sistema e à ideologia tradicional republicana não se deixou de se referir, mesmo quando totalmente fora de contexto, no “presente da salvação oferecido por Jesus Cristo”, que “veio à terra e morreu por nossos pecados”.

Com certeza, tanta apelação às forças divinas poderia terminar sendo uma contradição evidente, em comparação com as forças mais terrenais e objetivas que deveriam atuar pelo bem do país, mas isso é algo que nenhum republicano (e pouquíssimos democratas) se atreveriam a proclamar em público.

Seja como for, o resultado das primárias republicanas em Iowa foram um freio às consequências potencialmente devastadoras de uma arrancada de Trump, embriagado pela vantagem que as pesquisas lhe davam. Seu segundo lugar, atrás de Cruz, tem o amargo sabor da derrota. Pelo contrário, a terceira posição de Rubio, a pequena distância sobre os seus dois principais rivais, são sentidos como um certo ar de esperança e, até lhe poderiam transformar no candidato favorito em algum tempo, principalmente pelo fato de ser o preferido pelo aparato de Washington e pelas estruturas políticas tradicionais. Após a primeira e não decisiva batalha, a guerra entre os republicanos se mostra incerta, e talvez nem todos os atores relevantes tenham surgido no cenário – por exemplo, uma figura como Jeb Bush, filho e irmão de ex-presidentes, pode ter sido dada prematuramente como morta, e ainda não é realmente uma carta fora do baralho.

Enquanto isso, no campo democrata, Hillary Clinton e sua equipe, que inicialmente pensavam que a campanha seria um passeio triunfal, estão inquietos após o empate com Sanders em Iowa e devido às ameaças fruto da atuação dela no assalto terrorista à embaixada dos Estados Unidos na Líbia e da utilização do seu e-mail pessoal no intercâmbio de mensagens classificadas como secretas. Talvez se pergunte se terminará não saboreando o prato mais delicioso do jantar, quando parecia que o banquete da vitória já estava sendo servido, como há oito anos atrás.

Contudo, como deus é todo poderoso, será ele que marcará o destino de uns e outros, a não ser que prefira não se meter em política.
(Luis Matías López * - Público.es- tradução Victor Farinelli/ via Carta Maior)

Nenhum comentário: