O partido que assentiu com
reservas à Carta de 1988 tornou-se o principal guardião e o mais fiel
artífice de suas conquistas, ora carimbadas – a exemplo dele - de
estorvo à eficiência dos mercados e entrave à continuidade do
desenvolvimento brasileiro.
Entre outros motivos, o PT criticou o
resultado constituinte da redemocratização por considera-lo, como de
fato era, paralisante do ponto de vista da reforma agrária, avesso à
pluralidade sindical, elitista no que tange à redistribuição fiscal da
riqueza e ao controle do sistema financeiro, ademais de preservar
esporões da ditadura no metabolismo da sociedade.
A anistia
política recíproca para vítimas e algozes do regime militar sendo o
mais evidente deles. Mas também o privilégio da Justiça Militar para
julgar crimes de farda –um fio de continuidade à violência policial
impune, de custo pesado nos dias que correm.
O aspecto mais
deletério da correlação de forças expressa na Carta, porém, foi ter
legado um sistema político urdido para salvaguardar os interesses de
última instância das classes dominantes.
Forjou-se para isso uma
democracia representativa capaz de façanhas tais como ungir um
Presidente da República com votação esmagadora nas urnas, todavia
minoritário num Congresso capaz de faze-lo picar e engolir o próprio
programa de governo.
A trava de segurança comprova sua funcionalidade nos dias que correm.
Vinte
e seis anos passados, dezenas de conquistas progressistas de 1988
continuam à espera de uma regulamentação legislativa dificilmente
operável em um Congresso onde as forças progressistas e os
trabalhadores reúnem uma representação francamente minoritária.
Com
razão e argúcia, o ex-ministro Franklin Martins não desperdiça uma
chance de espetar nos adversários de seu projeto de regulação do
sistema audiovisual –engavetado pelo Planalto-- o escudo legal da Carta
de 1988: ‘Não queremos nada além da Constituição’, reclama.
E o que diz a Constituição de 1988 no capítulo que rege a comunicação social no Brasil?
Diz
no artigo 220, paragrafo 5º, que os meios de comunicação não podem,
direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio; define a
complementaridade nas concessões de radiodifusão entre o sistema
público, estatal e privado (art.223, caput); estabelece o direito de
resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material e
moral à imagem (art.5%u0DA, inciso V); enfatiza a preferência às
finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas no sistema
de radiodifusão (art.221, inciso I); prioriza a promoção e defesa da
cultura nacional e das culturas regionais (art.221, incisos II e III);
ordena o estímulo à produção independente (art.221, inciso II); proíbe
concessões de TV a pessoas que gozem de imunidade parlamentar e foro
especial, como parlamentares e juízes (art.54, inciso I) etc.
Por
que nada disso acontece então? Porque a correlação de forças expressa
na Assembleia de 1988 não permitiu ao país erigir uma Carta
auto-aplicativa em muitos casos. Alguns dos mais sensíveis, como esse,
representam matéria a ser regulamentada por um Congresso onde a bancada
de centro direita é francamente majoritária (hoje mais que ontem).
Um
número resume todos os demais: o sociólogo Emir Sader, colunista de
Carta Maior, lembra que enquanto a bancada ruralista conta com 162
deputados, a dos trabalhadores rurais inclui dois representantes.
Das 162 goelas a serviço do poder fundiário, 26 são de médicos.
Liderados
pelo anti-hipócrates Ronaldo Caiado eles sangraram a reforma agrária em
1988; dedicam-se agora ao humanitário propósito de arregimentar
deserções entre profissionais cubanos do ‘Mais Médicos’ --programa que
atende populações pobres e miseráveis, boa parte formada por descendente
de brasileiros expulsos do campo, por força da derrota reformista em
1988.
Em um ambiente legislativo dominado por cepas regressivas,
o risco de golpes constitucionais contra o espírito de 1988 é
permanente.
O legado em vigor - como a aposentadoria rural, a
universalização do serviço público de saúde, punição à demissão
imotivada, a extensão da licença -maternidade, o direito de greve e a
autonomia sindical etc. - se levado a uma revisão constitucional, como a
que houve em 2004, dificilmente escaparia de ser mitigado ou mesmo
revogado.
Foi essa tensão permanente que soldou a convergência
entre o PT e a Carta de 1988, que ganhou assim um guardião disposto a
honrá-la no que tinha de avançado.
O partido, por sua vez,
incorporou ao seu alicerce histórico um piso legal para ordenar a luta
pela construção negociada da democracia social brasileira.
Não foi pouco o que se conquistou nos últimos 12 anos.
O
salário mínimo teve um ganho de 70%, acima da inflação. Beneficia,
entre outros, os 14 milhões de aposentados e pensionistas rurais
reconhecidos pela Carta de 1988. Cerca de 17 milhões de vagas foram
abertas no mercado de trabalho, regidas pela regulação trabalhistas da
era Vargas, que a Carta preservou, aperfeiçoou e FHC prometera abduzir:
carteira assinada; férias; 13º; reajuste anual, licença maternidade etc.
Políticas sociais destinadas a mitigar a fome e a miséria adquiriram
forte abrangência: atingem cerca de 14 milhões de lares atualmente.
Mais de 55 milhões de pessoas.
O matrimônio entre o PT e a Carta de 1988 trouxe 60 milhões de novos consumidores para a fila do caixa.
O
conjunto criou um novo personagem histórico que mudou as referências
estratégicas da produção, da demanda e da política nacional.
A
assepsia que os cirurgiões conservadores gostariam de realizar nessa
equação requer um cavalo de pau inconciliável com a vigência da ordem
constitucional em vigor.
O chão político do conservadorismo foi
esburacado a tal ponto que o que se busca agora é uma máscara nova
para ocultar o conteúdo velho que orienta os blac blocks da ortodoxia .
As
sirenes do colapso iminente – ‘se não for hoje, de amanhã o Brasil não
passa’— ecoam um repertório que alimenta o descrédito na capacidade
soberana do país –e da democracia—para comandar o seu desenvolvimento,
subordinando mercados aos interesses da população e não o inverso.
Toneladas desse ácido corrosivo banham a confiança da sociedade diuturnamente.
A ardilosa montanha-russa eleva as expectativas para em seguida frustrá-las com a porretada do desencanto.
Cobra-se um país ‘padrão Fifa’.
Leva-se o desespero inflamável às ruas –que já produziu um cadáver.
Desautoriza-se em seguida a viabilidade e a construção do objetivo martelado.
A emissão conservadora esponja-se, então, no bordão tucano da estação: o ‘caos urbano’.
Culpa de quem?
(...)
‘Culpa’ dos governos petistas ‘que puseram em marcha uma estratégia de
alto rendimento econômico e político imediato, mas com pernas curtas e
efeitos colaterais negativos a prazo mais longo’. Assinado o rojão o
ex-presidente FHC, de credenciais sabidas no exercício do poder (
Estadão 03/11/2013).
Remédio tem, sibila-se no imaginário popular.
Qual?
O desmonte da Carta de 1988 e o aniquilamento do PT. Ou vice -versa .
Um
sugestivo seminário denominado "Transição incompleta e dilemas da
(macro) economia brasileira", realizado no Instituto FHC, em 26 de
agosto de 2011, reuniu a fina flor do PSDB em colóquio explícito sobre o
que seria do legado de 1988 se o Brasil caísse de novo em suas mãos.
Presentes: André Lara Rezende, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Pedro Malan e Pérsio Arida.
Consenso:
arrochar o gasto publico e elevar o superávit fiscal --não apenas para
cobrir o déficit anual entre receitas e despesas (em torno de 2% do
PIB), PIB) mas um esforço épico ( bélico?) capaz de contemplar também a
rolagem da dívida que deveria ser amortizada anualmente (uns 17% do
PIB).
Para atingir esse nirvana ortodoxo será necessário,
naturalmente, escalpelar o Estado e a nação, a começar por uma segunda
onda de privatizações capaz de fazer dinheiro.
Não apenas privatizações de patrimônio físico, portanto, que desse restou pouco após o reinado tucano.
Mas
também do escopo financeiro do Estado –que deve ser mínimo,
dispensando-se a concentração de recursos em mãos do gestor público.
Entra
no radar do reformismo, assim, a privatização dos fundos públicos, cuja
administração passaria à banca privada –caso do Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço (FGTS), Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e da
caderneta de poupança.
São inúmeras as implicações. Entre elas,
a revogação, na prática, do direito à moradia digna, que passou a
respirar através do programa Minha Casa, Minha Vida, fulminado por
ausência de recursos para a equalização do subsídio estatal à moradia
popular.
A meta do equilíbrio fiscal a ferro e fogo condiciona,
como se vê, o padrão de sociedade, a abrangência do desenvolvimento e a
sorte da gente que o protagoniza.
Para a inteligência tucana, o
padrão de Estado Social, com direitos europeus inseridos na Carta de
1988, é incompatível com a miserável gente brasileira.
‘Eles
encarecem o custo do investimento privado’, afirmam. E rebaixam a
poupança do setor público. O conjunto move a engrenagem do endividamento
do Estado; pressionando a taxa de juro, impedindo o desejado círculo
virtuoso do investimento.
Nenhuma palavra sobre justiça fiscal, por exemplo, capaz de reordenar o fluxo da riqueza para as demandas da sociedade.
Ao contrário, aventa-se cortes de impostos generosos dos ricos.
É
a filosofia da ‘oferta’ da era Reagan aplicada aos trópicos. Deixe o
dinheiro no bolso de quem sabe o que é melhor para o país.
Os mercados e seus endiabrados centuriões.
A
legião de desempregados da Europa onde bancos se locupletam, enquanto
direitos e vagas de trabalho minguam, traz dúvidas às certezas
inquebrantáveis marteladas pela emissão conservadora.
Aventou-se
no faiscante seminário do Instituto FHC, inclusive, a privatização das
reservas nacionais, liberando-se integralmente depósitos no exterior dos
dólares resultantes de exportações e movimentações financeiras.
O
país deixaria de gastar com a compra dessas divisas, justificou-se,
que rendem menos (aplicadas lá fora) do que o governo paga em juros aqui
para a obtenção dos reais necessários à sua aquisição.
Omite-se o
fato de que um Brasil sem o atual air-bag de US$ 375 bilhões em
reservas seria, nesse momento de transição de ciclo econômico mundial,
uma peteca de penas de colibri nas patas dos especuladores, locais e
internacionais.
Nenhum problema.
Do ponto de vista de quem
acredita que as conquistas dos últimos 12 anos devem ser corroídas – a
exemplo das tarifas protecionistas da economia-- para melhor
credenciar o país no repertório dos capitais globais, não importa o
custo em termos de demolição do parque fabril e da qualidade do emprego
presente e futuro.
Dos escombros, assegura-se, brotará uma nova
matriz de crescimento ‘mais leve, ágil e competitiva’, sem o fardo de
direitos e deveres legados pela Carta de 1988 e turbinados pelo ciclo
do’ lulopetismo’.
Quem acredita que o entrave ao avanço
progressista do desenvolvimento brasileiro decorre, exclusivamente, de
um déficit de ousadia dos governos do PT toma, portanto, a nuvem por
Juno.
Do PT pode-se –deve-se - cobrar um reencontro com o
engajamento criativo de suas bases, predicado indissociável da
centralidade que elas já ocuparam na vida do partido.
Pode-se,
deve-se, igualmente, desafiá-lo a resgatar o desassombro político
original, anestesiado pela responsabilidade do poder e só restituível
com amplas doses de democracia e transparência interna.
Mas a
parede contra a qual se esbarra hoje, na disputa pelo passo seguinte do
desenvolvimento, remete a um fio de continuidade que liga 1964, 1988 e
2014.
Ela se ancora na mesma correlação de forças que em 1988
–como hoje-- interditou a reforma política, o financiamento público de
campanha, a justiça fiscal (capaz de alimentar os fundos públicos
requeridos pelo desenvolvimento) e o controle sobre o mercado financeiro
e a democratização pluralista da mídia.
A Carta de 1988
dissociou o núcleo duro do capitalismo brasileiro do espírito
progressista e cidadão que embalou a reordenação constitucional ao final
da ditadura.
A tensão parece ter chegado ao seu nível máximo. E
as ruas –naquilo que expressam de insatisfação real-- são uma expressão
de contradições que já vazam dos limites da institucionalidade
disponível.
Para o país inaugurar o novo ciclo histórico
requerido pela transição em curso na economia mundial (cuja redução de
liquidez inviabiliza a acomodação dos conflitos via importações baratas e
saldos comerciais elevados propiciados pelo boom das commodities) é
forçoso romper esses limites e interditos.
Não é obra apenas para o PT.
É
tarefa para um mutirão histórico, organizativo e constitucional, que
reivindica uma articulação progressista maior, mais sólida e mais
coerente do que aquela que emergiu ao final da ditadura.
Do que
menos o Brasil precisa nesse momento é de um rojão de
irresponsabilidade homicida, que unifique as fileiras do
conservadorismo em defesa de uma regressividade camuflada de ordem para o
progresso.
A ver.
(Saul Leblon)
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