
Segundo Débora Diniz, o mal-entendido
na concessionária da Barra reflete uma realidade brasileira: crianças
negras são invisíveis ao universo do consumo; charge do artista Máximo
compara concessionária a um navio negreiro
- Foi um mal-entendido ou uma
criança negra é invisível ao universo do consumo de luxo no Brasil?
Confira, abaixo, a análise da antropóloga Debora Diniz, sobre o caso de
racismo numa concessionária da BMW na Barra da Tijuca, no Rio de
Janeiro:
Qual mal-entendido?
O casal, branco, queria comprar uma BMW no Rio; o gerente da loja, expulsar um menino negro de 7 anos. Era o filho deles
Debora Diniz*
Em nenhum momento, ele olhou para o nosso filho."
Priscilla Celeste Munk é mãe de uma criança negra de sete anos. No
catálogo racial brasileiro, ela é uma mulher branca. Sua branquidade se
anuncia pela cor da pele, mas também pela classe social. Foi como uma
mulher branca, acompanhada de seu marido também branco, Ronald Munk, que
vivenciou o racismo contra seu filho adotivo em um dos templos do
consumo de luxo no país - uma concessionária de carros BMW no Rio de
Janeiro. A cena foi prosaica: a família foi à concessionária e o filho
se entreteve com uma televisão. O gerente os atendeu como um casal
desacompanhado. Quando a criança se aproximou, a cor de sua pele resumiu
a impertinência de sua presença em um lugar onde somente brancos e
ricos seriam bem-vindos. Sem se dirigir ao casal, o gerente ordenou que a
criança saísse da loja: "Você não pode ficar aqui dentro. Aqui não é
lugar para você. Saia da loja. Eles pedem dinheiro e incomodam os
clientes".
Imagino que o monólogo do gerente com a criança sem nome
nem rosto, mas rejeitada pela cor, tenha sido adequadamente reproduzido
pela mãe. A combinação entre um "você" que olha, mas ignora a criança, e
um abstrato "eles", que não olha, mas registra a desigualdade, é
poderosa para resumir a racialização de classe da sociedade brasileira.
Em poucas palavras, o gerente oscilou entre dois universos, ambos
movidos pela mesma inquietação moral: como proteger os ricos dos pobres,
os brancos dos negros. O gerente não cogitou estar diante de uma
família multirracial, mas de clientes brancos e de um menino negro
pedinte que perturbaria a tranquilidade do consumo.
Até aqui, não haveria nada de novo para a realidade da
desigualdade social que organiza o espaço do consumo - engana-se quem
pensa que os shoppings centers são locais de livre trânsito: as regras
sobre como se vestir e se portar não permitem que todos igualmente ali
transitem. A impertinência do caso é, exatamente, estremecer essa ordem
silenciosa da desigualdade racial e de classe da sociedade brasileira.
Por isso, com a devida sensibilidade do capitalismo global, a
concessionária da BMW optou por descrever o caso como um
"mal-entendido".
"Preconceito racial não é mal-entendido", disse a família
em uma campanha aberta sobre o caso, porém com cautela sobre a
identidade do filho que se vê resumido à cor. Não tenho dúvidas de que
esse é um caso de discriminação racial - a cor da pele importa para o
reconhecimento do outro como um semelhante. É isso que chamamos racismo:
descrição do outro como um dessemelhante e abjeto pela cor de seu
corpo. A criança de 7 anos, antes mesmo de entender o sentido político
do racismo na cena vivida, foi alvo de uma rejeição que resume sua
existência. Assim será sua vida. O consolo familiar é que o garoto
redescreveu para si que "crianças não eram bem-vindas à loja" e não se
personalizou na rejeição pelo corpo. A ingenuidade infantil em breve
será vencida pela observação cotidiana de práticas racistas. Com a perda
da ingenuidade, a criança sem nome e com somente cor encontrará outro
grupo para traduzir sua experiência de sentir-se abjeta - não será mais
porque é uma criança em um ambiente de adultos, mas um adolescente, um
homem ou um velho negro em um mundo cuja ordem do consumo e da lei é,
ainda, branca.
Por isso, desejo explorar o argumento do "mal-entendido"
para além de uma estratégia infeliz de marketing. De fato, há um
mal-entendido ético que costurou o roteiro desse desencontro racial.
Para ser reconhecido como um futuro adulto rico e potencial amigo da
concessionária para a compra de carros de luxo, o garoto de 7 anos
precisaria habitar um corpo inteligível para a casta dos ricos. Sua cor o
torna um sujeito inimaginável. Para ser reconhecido, é preciso antes
ser inteligível à ordem dominante.
Crianças negras são ainda invisíveis ao universo do
consumo, o que pode parecer óbvio dada a sobreposição da desigualdade de
classe à desigualdade racial no País: negros são mais pobres que
brancos, um fato que alimenta intermináveis controvérsias sobre as
causas da desigualdade, se seriam elas de renda ou raciais. A verdade é
que as crianças negras não são invisíveis apenas na concessionária da
BMW, mas em escolas, hospitais ou espaços de lazer, isto é, como futuros
cidadãos à espera da proteção de uma sociedade que se define como livre
do racismo.
Como em um experimento sociológico, o caso da família
multirracial mostrou que a renda não é capaz de silenciar a rejeição
racial: a criança se converteu em um ser abstrato, parte de uma massa de
pedintes que incomodam os clientes ricos. Ao contrário do que imagina a
loja da BMW, o mal-entendido não se resumiu ao diálogo entre o gerente e
a família, mas entre quem imaginamos que somos como uma democracia
racial e o que efetivamente fazemos com nossa diversidade racial.
* Debora Diniz é antropóloga, professora da
Universidade de Brasília e pesquisadora da ANIS - Instituto de Bioética,
Direitos humanos e Gênero- via Brasil247
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