É bastante conhecida a frase atribuída ao ex-chanceler alemão Otto von Bismarck (1815-1898), segundo a qual “os cidadãos não dormiriam tranquilos se soubessem como são feitas as leis e as salsichas”. Pode-se, com certeza, acrescentar à citação famosa: “e os jornais”.
O cidadão leitor de jornais que nunca trabalhou numa Redação ficaria surpreendido com a quantidade de informações que consome imaginando se tratar de produto original, garimpado e elaborado por um jornalista a serviço de determinado veículo, aquele que publica seu diário ou sua revista semanal – e que na verdade tem outra origem completamente diversa.
Muito comumente, a fonte é uma assessoria de imprensa contratada para defender os interesses de uma empresa, um político ou um setor específico da economia. Até mesmo assessores de imprensa que já atuaram em redações de jornais se declaram constrangidos com a facilidade com que se pode “plantar” uma versão favorável a seus clientes em qualquer veículo de comunicação.
Manchetes “espontâneas”
Lançamentos de produtos costumam incluir um trabalho de preparação de notícias destinadas a gerar curiosidade sobre determinados temas. Por exemplo, o lançamento de um medicamento pode ser antecedido por reportagens pseudocientíficas muito convenientes – para a indústria farmacêutica – sobre o aumento na incidência de determinadas moléstias.
A vulnerabilidade dos meios de comunicação a interesses específicos se torna ainda mais clara quando se trata de temas sobre os quais a posição da empresa jornalística é muito evidente.
Para ganhar atenção, basta apelar para um dos bordões usados pela própria mídia. Algumas assessorias de comunicação costumam também manter atualizados os perfis de jornalistas mais influentes, buscando atraí-los para determinadas posições de interesse de seus clientes.
O círculo de influência não pode ser determinado com precisão, mas sabe-se que muitas manchetes “espontâneas” podem nascer no departamento de comunicação de alguma empresa ou no gabinete de um político.
Voz do dono
Observe-se, por exemplo, a notícia sobre o custo de produção de veículos no Brasil, publicada na quinta-feira (30/6) na Folha de S.Paulo.
A reportagem, postada junto a uma nota sobre o lançamento da política nacional para o setor industrial, previsto para a segunda quinzena de julho, é claramente “inspirada’ num estudo divulgado pela assessoria de imprensa da Anfavea, a associação das montadoras instaladas no Brasil. O levantamento, sob responsabilidade da PricewaterhouseCoopers, afirma que a principal causa do preço alto dos carros por aqui é o custo da mão de obra.
Ora, a própria Folha, ou melhor, o blog Omundoemmovimento, hospedado no portal UOL, havia publicado no começo de junho uma reportagem – esta sim, resultado do trabalho jornalístico – demonstrando que é a margem de lucro exorbitante que faz o consumidor brasileiro pagar muito mais pelo carro do que, por exemplo, no México, país cujo mercado pode ser comparado ao nacional.
A reportagem, conduzida pelo repórter especializado Joel Leite, com a participação de Ademir Gonçalves e Luiz Cipolli, lembra que os fabricantes alegam que a alta carga tributária, a baixa escala de produção e o custo da mão de obra determinam os preços finais dos veículos. Mas nunca revelam o perfil completo dos custos de produção, para que possam ser comparados aos preços finais para se determinar quanto é o lucro das empresas.
Publicada em dois capítulos, a investigação jornalística demonstra que o Volkswagen Jetta, por exemplo, custa no México o equivalente a R$ 32,5 mil, enquanto no Brasil não sai por menos do que R$ 65,7 mil.
Um a um, a reportagem vai demolindo os argumentos das montadoras. Demonstra, por exemplo, que a carga tributária para a indústria automobilística vem caindo desde 1997, e que mesmo assim os preços continuaram subindo. Da mesma forma, a escala de produção se multiplicou, o Brasil fechou o ano de 2010 como o quinto maior produtor de carros e o quarto mercado consumidor do mundo, e o volume não foi suficiente para baixar os preços.
A principal razão, segundo a reportagem, é a ganância: a margem de lucro das montadoras no Brasil chega a ser três vezes maior do que as margens das mesmas empresas em outros países.
Em poucas palavras: as montadoras brasileiras são responsáveis por boa parte do lucro de suas matrizes e o brasileiro paga pela crise do setor automobilístico em outros países.
O press-release da Anfavea que virou reportagem na Folha de quinta-feira (30) foi claramente uma tentativa de resposta ao trabalho investigativo de Joel Leite e sua equipe.
Mas o leitor da Folha sabe disso?
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